Por Maria Costa, médica e ativista do MML MG
Até alguns meses atrás a epidemia que mais se falava com o início do Verão era a
Dengue. No entanto, este ano o vilão mudou, chama-se Zika e hoje é um dos
grandes receios da população brasileira e muito especialmente das mulheres grávidas.
“Estamos
assistindo ao surgimento de uma geração de sequelados.
O impacto será
gigantesco”[1] são as palavras da chefe do serviço de infectologia pediátrica do Hospital
Universitário Oswaldo Cruz, do Recife. Existe essa possibilidade, mas acreditamos
que o governo tem os meios para diminuir ao máximo o impacto
desta epidemia ainda que para isso tenha que fazer algo que nunca se dispôs a
fazer: Colocar os seus recurso financeiros e materiais a serviço da saúde e
bem-estar da classe trabalhadora e deixar de financiar banqueiros e
multinacionais.
Onde surgiu e
o que é o Zika vírus?
O vírus Zika pertence a um grupo
de vírus designados flavivírus (“vírus amarelos”) juntamente com
o vírus da Dengue e Febre Amarela. Estes vírus são
transmitidos por mosquitos, do gênero Aedes (que significa odioso em grego).
Existem várias espécies de mosquito Aedes mas o que circula majoritariamente na América
Latina é o Aedes aegypti (odioso
do Egito) e é ele que transmite o vírus no Brasil.
O Zika vírus foi
introduzido no Brasil, possivelmente, por turistas que vieram assistir à Copa do Mundo em 2014. Nesse mesmo ano, foi publicado um estudo que
conclui que o virús Zika sofreu um processo importante de mutações e que já era possível
definir duas linhagens diferentes do vírus: a Africana e a Asiática[2]. É esta última linhagem que circula neste momento no Brasil, Colômbia,
Chile, El Salvador,
Guatemala, Mexico, Paraguai, Suriname e Venezuela.[3]
Em
Fevereiro deste ano (2015) foram notificados, ao Ministério da Saúde (MS),
cerca de 6.800
casos de doença exantemática, ou seja com
erupções vermelhas na pele, sem causa
definida na Região Nordeste. Todos os casos apresentaram evolução benigna e cura espontânea. Em
29 de Abril, pesquisadores da Universidade Federal da Bahia anunciaram a
identificação do vírus Zika como
causador dessa doença. Neste momento o vírus já foi identificado em 20
estados Brasileiros, só
estando livres os estados de Minas Gerais, Santa Catarina,
Rio Grande do Sul e Acre[4], no entanto acreditamos que é apenas uma questão de tempo para
que surjam casos nestes estados.
Como é transmitido e que doenças causa o vírus Zika?
Até o
momento só a doença exantemática é comprovadamente causada de forma direta pelo vírus Zika. A síndrome de
Guillain-Barré e a microcefalia em recém-nascidos, filhos de mães que contraíram Zika
durante a gravidez, estão relacionadas com a infecção, mas ainda não se têm a
certeza de por qual mecanismo.
80% das
pessoas infectadas pelo vírus não apresentam qualquer sintoma e 20% apresentam
uma síndrome com a presença de erupções vermelhas na
pele (exantema) e coceira, febre, conjuntivite, dores musculares e das articulações e
cefaleia. Nem todos os sintomas estão presentes, os três primeiros
referidos são os mais comuns.
A síndrome de
Guillain-Barré (SGB) é uma doença auto-imune em que o sistema imunológico ataca o
revestimento as células nervosas (a bainha de mielina). A doença caracteriza-se
por fraqueza muscular de gravidade variável, formigamento e dores musculares. Não existe
tratamento específico para esta doença, normalmente as pessoas recuperam totalmente
ainda que algumas podem necessitar de fisioterapia para recuperar. Apesar de ainda não ter sido comprovado, acredita-se que haja
relação entre a infecção por Zika e a SGB pois tanto no Brasil como na Polinésia
Francesa houve um aumento de casos de
SGB durante o surto de Zika. Os estados do Nordeste tiveram um aumento
de 50-100% do número de casos de SGB este ano.
A
microcefalia não é uma doença em si, mas um sintoma. Medidas como o peso, comprimento/altura e perímetro cefálico
variam muito nos seres humanos. Para avaliar estas medidas nas crianças, desde
o nascimento, usam-se, no Brasil, as curvas de percentis, elaboradas pela OMS,
que podemos encontrar nas cadernetas de saúde infantil.
Estas curvas são medidas estatísticas que nos dizem qual a percentagem da população que tem um
determinado valor de peso, altura ou perímetro cefálico. Quando se
afastam muito da média (percentil 50) podem indicar a presença de doenças. Em
recém-nascidos (RN) de termo (mais de 39 semanas de gestação)
normalmente é diagnosticada quando o perímetro cefálico é inferior
a 32cm, com base nas curvas da OMS, que levam em conta amostras da população a nível
mundial.
A
microcefalia pode ser causada por várias doenças durante a
gravidez (rubéola, toxoplamose, HIV, Sífilis, etc) e também por alguns
medicamentos ou drogas como o álcool. Porém, no dia 22 de
Outubro deste ano a Secretaria de Saúde de Pernambuco notificou o MS de um aumento
dos casos de microcefalia, até então tinham sido registrados 26 casos.[5] Para se ter uma ideia, no final do ano anterior, 2014, tinham sido
registrados 12 casos em Pernambuco, ou seja menos de metade.[6] Desde essa data para cá o número de casos aumentou exponencialmente. No
momento em que escrevo este texto já são mais de 1700 casos a nível nacional, só na
primeira semana de Dezembro o número de casos suspeitos de microcefalia
aumentou 41%, passou de 1248 para 1761.[7]
A relação entre
o aumento do número de casos de microcefalia e a infecção por zika vírus foi
estabelecida por vários fatos entre os quais destaco os mais significativos: 1)
entrevistas com mais de 60 gestantes, que tiveram doença
exantemática na gravidez
e cujos filhos nasceram com
microcefalia, sem histórico de doença genética na família e/ou exames
que evidenciassem outras causas de microcefalia; 2) Identificação de casos de microcefalia também na
Polinésia Francesa coincidentes com surto de Zika vírus; 3)
Identificação do vírus Zika em líquido amniótico de duas
gestantes cujo feto apresentava microcefalia, no interior da Paraíba; 4)
Identificação do vírus Zika em tecidos de recém-nascido que morreu 5 dias depois do parto,
no estado do Ceará, e que tinha sido diagnosticado com microcefalia durante a gravidez.5
A OMS também
reconheceu a relação entre a infecção pelo Zika e o aumento de casos de microcefalia, mas afirma que ainda
não se pode afirmar com certeza que a infecção pelo vírus seja
a causa direta da microcefalia ou se existem outros fatores associados.
A
microcefalia não tem cura, só
é possível o tratamento de suporte para as doenças neurológicas
associadas (epilepsia, por exemplo) e terapias que ajudem a ultrapassar os déficits
cognitivos e motores (fisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional).
Aumentam os casos de microcefalia e o
governo segue querendo reduzir custos!
A medida
que define microcefalia é
controversa. Normalmente é estabelecida
quando a medida de perímetro cefálico está abaixo do 3º Percentil para a idade e sexo, ou seja 32 cm nos RN de mais de 39
semanas de gestação. Para os RN com menos semanas de gestação/prematuros
existem tabelas específicas.
Na
primeira nota informativa lançada pelo governo, publicada a 17 de Novembro7,
este estabelece como medida de corte 33 cm de perímetro cefálico para
notificação de microcefalia. Esta decisão visava aumentar a sensibilidade na detecção de
casos de doença. Como disse acima, o perímetro cefálico de 33 ou
32cm não define por si só doença, é um marcador para fazer exames complementares
que avaliem se existe ou não doença. Ao estabelecer uma medida de corte mais
elevada está-se na prática a aumentar a população que será submetida a
exames complementares e acompanhamento médico para diagnosticar se existe ou não doença, o que
seria correto na atual situação.
No entanto
em nota publicada no dia 7 de Dezembro o governo voltou atrás
reestabelecendo a medida de 32 cm para notificação de
microcefalia: “Até
o dia 28 de novembro, o Ministério da Saúde havia
recebido 1.248 notificações de casos suspeitos. Todos esses casos têm medida
craniana igual ou inferior a 33 cm. Na primeira triagem desses casos suspeitos,
muitos dos diagnósticos realizados precocemente e preventivamente já foram
descartados. A nova medida visa agilizar os procedimentos clínicos,
sem descuidar dos bebês que fizeram parte da primeira lista de casos
notificados.”[8]
Ou seja, o
governo deixa entender que houve RN com 33 cm de perímetro cefálico em
que não se comprovou que eram saudáveis, mas que ainda assim a partir de agora só vão ser
seguidos os RN com 32 cm de perímetro cefálico para “agilizar
os procedimentos clínicos”. Ou seja, na
prática, uma parte dos bebês afetados pode não ser devidamente
acompanhada para diminuir os gastos do SUS.
Consideramos
que por enquanto se devia manter como medida de referência os 33cm,
explicando aos pais que seria apenas uma medida para ter certeza que nenhuma
criança doente deixaria de ser acompanhada. Pode ser que no decorrer do tempo
se chegue à conclusão que é seguro usar os 32 cm como medida de corte, mas, neste momento, em que
se sabe tão pouco do vírus é com certeza uma medida precoce e que tem como único objetivo
diminuir custos.
Diante da epidemia, as mulheres trabalhadoras
e seus filhos são os principais penalizados!
Neste
momento a única solução dada pelo MS às mulheres grávidas é evitar as picadas de mosquito: “Evite horários e lugares
com presença de mosquitos; Sempre que possível utilize
roupas que protejam partes expostas do corpo; Consulte o médico
sobre o uso de repelentes e verifique atentamente no rótulo as
orientações quanto à concentração e frequência de
uso recomendada para gestantes; Permanecer, principalmente no período entre
o anoitecer e o amanhecer, em locais com barreiras para entrada de insetos
como: telas de proteção, mosquiteiros, ar-condicionado ou outras
disponíveis.”
E ir ao médico se houver alguma alteração no seu
estado de saúde...5
Por mais
que tomem todos esses cuidados, não é possível garantir que não vai sofrer
nenhuma picada de mosquito durante os 4 ou 5 meses que dura a época de
atividade do Aedes aegypti, ou seja todas as mulheres grávidas
neste momento, por mais cuidadosas que sejam, correm risco real de ser
infectadas pelo vírus zika e ter um filho com microcefalia.
Mediante
esta realidade, no passado dia 12 Novembro, o diretor do departamento de Vigilância de Doenças
Transmissíveis do Ministério da Saúde, Cláudio Maierovitch, deu o seguinte conselho às mulheres
brasileiras: “Não engravidem agora. Esse é o conselho mais sóbrio que pode ser
dado”[9]. Tenho acordo com o conselho, eu e muitos médicos clínicos
gerais, obstetras e pediatras que têm sido questionados, respondem: “Por favor
não engravide agora!”. A pergunta que se segue é como??
Como garantir que não se engravida num país em que a distribuição de
contraceptivos gratuitos é tão deficiente? Onde pouquíssimas mulheres têm condição econômica de
ter acesso a contracepção que não exige toma diária e que por isso é muito mais segura (anel vaginal, adesivos cutâneos, DIU
hormonal e de Cobre)?
Tendo noção do
paradoxo o ministério da saúde apressou-se a soltar uma nota, no dia 13 Novembro, contrariando Cláudio
Maierovitch: “Não há
uma recomendação do Ministério da Saúde para
evitar a gravidez. As informações estão sendo
divulgadas conforme o andamento das investigações. A decisão de uma
gestação é
individual de cada mulher e sua família.”
Deveria
ser uma decisão individual de cada mulher e sua família mas não é! A
mulher que engravida de forma acidental não pode tomar mais nenhuma decisão, o
estado já tomou por ela proibindo o aborto.
Essa
proibição hoje se torna ainda mais trágica pois não é só a
perspectiva de ter um filho não planejado mas também um filho que
pode ter enormes problemas de saúde e que vai necessitar de um acompanhamento médico que
muitas famílias trabalhadoras não têm condições de proporcionar. Segundo a chefe do serviço de
infectologia pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz de Recife, Angela Rocha, “é necessário garantir que pais e cuidadores não tenham uma
queda muito significativa nos rendimentos. Isso porque a rotina de tratamento desses
bebês é
intensa. Pais terão de levá-los às
consultas muita vezes durante o horário de trabalho.”1
Mesmo que
se tenha acesso aos melhores contraceptivos nenhum deles é 100% seguro,
inclusive quando são usados corretamente falham e podem ocorrer gravidezes indesejadas.
Acreditamos que agora, mais do que nunca, é fundamental que
as mulheres possam escolher se querem ter um filho, correndo o risco de ser
infectadas pelo Zika, ou se não querem correr esse risco, e nesse caso devem
ter acesso a realizar um aborto no SUS, gratuito e em segurança.
Por isso,
exigimos dos governos medidas concretas para combater o Aedes aegipty e o Zika
vírus:
1.
Colocar em prática desde já um plano
consequente para o combate ao Aedes aegipty, com medidas de efeito a curto e
longo prazo, que passam por contratação massiva de agentes de saúde para a
eliminação de focos de reprodução do mosquito, limpeza de descampados
especialmente nas áreas urbanas, eliminar todos os lixões a céu aberto,
construção de rede de esgoto e saneamento básico em todas as
cidades e que sirvam a toda a população;
2.
Disponibilização de todos os
recursos financeiros necessários para a pesquisa científica, em
instituições estatais, sobre o vírus Zika inclusive para o possível
desenvolvimento de uma vacina;
3.
O governo deve distribuir
gratuitamente repelentes de qualidade para toda a população, mas de forma
prioritária às mulheres grávidas;
4.
Fornecimento gratuito a todas as
mulheres em idade reprodutiva de todos os contraceptivos disponíveis, em
especial os que não necessitam de toma diária e que por isso tornam-se mais seguros
(anel vaginal, adesivos cutâneos, implante subcutâneo, DIU hormonal
e de Cobre);
5.
Legalização do aborto por
malformação do feto até
às 24 semanas de gestação. Todas as grávidas em
que for diagnosticada ou houver suspeita de infecção pelo vírus Zika
devem ter opção de realizar um aborto, gratuito e pelo SUS, até às 24 semanas de
gestação;
6.
Legalização do aborto até às 12
semanas para todas as mulheres que não desejarem engravidar;
7.
Todas as grávidas que não tiverem
sintomas devem fazer o teste para saber se estão infectadas com
vírus Zika no primeiro e segundo trimestre. A ultra-sonografia morfológica deve
passar a ser obrigatória e deve ser realizada entre as 18 e 22 semanas para diagnóstico de
microcefalia. No caso de dúvida as mulheres que desejarem devem poder
realizar a detecção do vírus no liquido amniótico;
8.
Disponibilização dos melhores
tratamentos gratuitos para as crianças com microcefalia e outras mal-formações congênitas. O
governo deve fornecer um subsidio que garanta que as famílias têm todas
as condições econômicas de criar os seus filhos com dignidade. Garantia de estabilidade
no emprego para todos os pais e mães de crianças com
microcefalia e outras malformações congênitas.
9.
Para que possa ser dado o melhor
atendimento à classe trabalhadora e em especial às grávidas
neste momento exigimos 10% PIB para o SUS já!
Todas
essas medidas devem ser incluídas como demandas das lutas da classe
trabalhadora, pois só
dessa forma conseguiremos garantir com que seja prioridade
máxima a vida e a saúde da população, e não os
lucros de banqueiros e empresários.
[4] Protocolo de vigilância
e resposta à ocorrência de
microcefalia relacionada à infecção
pelo vírus Zika / Ministério
da Saúde, Secretaria de Vigilância
em Saúde, Departamento de Vigilância
das Doenças Transmissíveis.
– Brasília: Ministério da Saúde,
2015.