Por Alice Andreatta, de São Paulo
O texto final da Conferência Rio+20 contou com o repúdio de diversos grupos e movimentos de mulheres pois foi retirado o termo “direitos reprodutivos” das mulheres. Este termo estava contido nas declarações das diversas conferências que antecederam a Rio+20 (Eco 92, Viena 93, Cairo 94, Beijing 95 e Durban 2001).
A ONU entende por direitos reprodutivos das mulheres a opção de ter filhos, portanto, certo controle e planejamento da maternidade. A possibilidade de respaldo que isso pode significar para a prática do aborto fez com que o Vaticano atuasse durante a Rio+20 no sentido de retirar este termo, retrocedendo, portanto no que havia sido definido nas conferências anteriores.
A presidenta Dilma Roussef, junto com a responsável pela pasta ONU Mulheres, Michelle Bachelet, articularam a retirada do termo sob o argumento de que é necessário saber trabalhar as diferenças. O problema é que lidar com essa diferença deveria significar um enfrentamento com a concepção de que as declarações políticas dos Estados na Conferência Rio+20 devem estar alinhadas a concepções religiosas e, mais do que isso, uma diferença que envolve a vida de milhares de mulheres.
É possível e necessário não encarar esse debate pelo viés religioso. O Vaticano e a Igreja católica podem ter qualquer opinião, mas isso não pode influenciar as políticas de Estado, tampouco a orientação para o conjunto dos países de que parte das resoluções a serem tomadas do ponto de vista dos direitos sociais reprimam os direitos reprodutivos das mulheres.
E o lamentável dessa resolução é que a primeira presidenta do Brasil, que se elegeu também sob o discurso de empoderamento das mulheres, seja uma das principais articuladoras dessa resolução. Os abortos clandestinos são a 3ª causa de morte de mulheres no Brasil, o próprio governo brasileiro já compreendeu que os gastos do Estado com a assistência às mulheres que o realizam é maior do que se a prática do aborto fosse realizada nos hospitais públicos brasileiros.
Mas Dilma fez uma opção política em sua campanha eleitoral e assegurou aos setores religiosos que não alteraria a legislação relativa ao aborto. Sua postura na Rio+20 demonstrou que não foi apenas para ganhar a eleição que ela teve essa postura irresponsável com as mulheres.
Na Cúpula dos Povos, o debate:
qual a melhor saída para as mulheres?
A Cúpula dos Povos foi uma articulação construída pelos movimentos sociais para elaborar propostas alternativas para o meio ambiente e para os problemas sociais em vigência hoje no Brasil e em todo mundo. Assim, muitos movimentos de mulheres participaram com força para entrar na disputa de qual teriam que ser as saídas mais efetivas para resolver a situação das mulheres, a destruição do meio ambiente e a pobreza que segue aflingindo a maior parte da população mundial.
De uma forma geral, os movimentos de mulheres e sua principal organização no Brasil, a Marcha Mundial de Mulheres, questionam o sistema capitalista e apontam que deve haver a construção de uma alternativa que questione esse modelo. E que isso necessariamente passaria pela construção de um projeto de mundo feminista, alternativo ao modelo econômico capitalista, em que as mulheres sejam protagonistas. Assim, na esfera econômica, a tarefa seria a construção de um modelo alinhado às necessidades dos povos, explorando as iniciativas da economia solidária. Do ponto de vista da tarefa política, a ação seria no sentido de “uma profunda redemocratização do Estado”.
Há, entretanto muitos limites nessa proposta alternativa. Limites esses que não apontam o centro dos problemas das mulheres e da maior parte da população mundial. O primeiro problema está relacionado à abordagem das mulheres como um setor único. O mundo é dividido em classes sociais e, por isso, o capitalismo exerce conseqüências particulares às mulheres trabalhadoras em relação às mulheres burguesas.
O capitalismo utiliza a opressão para superexplorar um setor da classe trabalhadora, as mulheres. Essa opressão se exerce sobre todas as mulheres, mas as mulheres trabalhadoras combinam a exploração capitalista com a opressão machista. A lógica de funcionamento da sociedade capitalista é a exploração de uma classe sobre a outra, portanto o cerne das resoluções de seus problemas está no enfrentamento de classe contra classe, de homens e mulheres trabalhadores contra homens e mulheres da burguesia.
As tarefas conseqüentes desse enfrentamento seriam, do ponto de vista econômico, a consolidação de uma organização social controlada pela maioria da população, com controle do Estado, na medida em que o estado seja a representação política da classe trabalhadora exercendo seu poder. Assim, a tarefa política sob o Estado burguês é a sua destruição e não uma “profunda redemocratização”.
Um novo feminismo?
A Marcha das Mulheres na Cúpula dos Povos foi um dos expoentes das atividades e levantou atenção para a situação das mulheres no mundo todo. Diversos movimentos questionavam a violência contra a mulher, a diferença salarial, a falta de direitos sociais básicos, como creche, moradia, educação e saúde.
Contou também com manifestações que tiveram muita repercussão, como as mulheres sem camisetas, com os seios à mostra. Essa mesma postura pôde ser vista nas manifestações da Marcha das Vadias que ocorreram em várias cidades do Brasil e do mundo. O centro do questionamento que levam a essa postura é a falta de liberdade às mulheres, que faz com que as mulheres não tenham segurança para andar sozinhas a noite, que sejam julgadas pelo seu comportamento e que obrigam uma postura social adequada à submissão aos homens.
Nesse sentido, é um grito de liberdade a uma realidade que ainda não se resolveu. Apesar das conquistas das mulheres na história principalmente do século XX, há uma série de condições controversas que precisam ser resolvidas. E ainda está em debate qual é a saída. Porque diante dessa realidade atual, não se pode afirmar que houve um projeto de organização e de programa das mulheres que resolveu todos os problemas.
A postura das mulheres sem blusa está sendo associada a um novo feminismo, coerente ao século XXI. O problema é que muitos problemas relativos às mulheres são na verdade o aprofundamento de situações que já existiam nos momentos em que se desenvolveram outros movimentos feministas. Por exemplo, de 1980 para cá, no Brasil, o número dos casos de violência contra as mulheres aumentaram 217%. Ao mesmo tempo, determinadas conquistas garantidas em períodos de ascenso dos movimentos de mulheres estão sendo atacadas hoje, sob a crise do capitalismo. A expressão mais contundente disso são as conquistas das mulheres no Estado de Bem Estar Social europeu, que estão ruindo, junto com tudo o que o capitalismo pode retirar dos trabalhadores.
Dessa forma, os direitos conquistados pelas lutas das mulheres vão ficando cada vez mais restritos às mulheres burguesas ou representantes políticas da burguesia, que também atuam no sentido de retirar direitos de homens e mulheres trabalhadores. Ângela Merkel é a principal expressão disso: a principal articuladora dos planos de austeridade para toda a Europa.
Portanto, o novo feminismo que surge deve se construir sob o resgate da estratégia que sempre se apresentou como mais coerente para a resolução dos problemas das mulheres: a luta contra o capitalismo e a construção do socialismo, ou seja, a luta para que a classe trabalhadora mundial passe a governar um Estado de outro caráter e controle uma economia com outro propósito, em que a exploração de uma classe sobre a outra não seja mais o critério fundamental de organização e sustentação da sociedade.
E para isso, esse novo feminismo deve resgatar as concepções classistas que foram parte das lutas das mulheres no século XX, as concepções que, por exemplo, se opuseram às mulheres burguesas que defendiam o direito ao voto apenas às mulheres que tinham propriedade, como assim ocorreu na luta pelo voto das mulheres na Europa, EUA e também no Brasil. É necessário construir o novo sob a perspectiva que fez com que o primeiro Estado operário da história da humanidade tivesse a Constituição mais igualitária no que diz respeito aos direitos das mulheres.
Resgatar essas concepções significa ir a fundo na disputa da consciência da classe trabalhadora em relação ao machismo, porque a burguesia o faz cotidianamente com todos seus instrumentos como a Imprensa, Estado e tenta enfiar na cabeça dos trabalhadores que as mulheres são inferiores aos homens e que portanto tem que receber menos, tem que fazer o serviço doméstico, etc. Tirar a blusa pode ser um grito de liberdade, mas não podemos parar por aí, porque a liberdade das mulheres e, principalmente das mulheres trabalhadoras, não existe no capitalismo.
Repúdio ao stalinismo
Muitas ativistas honestas identificam que o resgate dessa estratégia de luta significaria repetir os erros da experiência stalinista. A Constituição mais igualitária da história em relação aos direitos das mulheres sofreu muitos retrocessos sob as mãos do stalinismo, que deturpou de conjunto a concepção marxista de Estado operário e de luta contra a opressão das mulheres.
A idéia de que a luta contra a opressão das mulheres é uma tarefa secundária, para ser feita após a revolução foi subterfúgio para que a URSS, sob o comando de Stálin, atacassem as conquistas das mulheres e construísse um ideário retrógrado de que as mulheres nasceram para ser mãe, ao mesmo tempo em que ao atacar de conjunto os direitos sociais conquistados com a revolução promoveram para as mulheres da classe trabalhadora péssimas condições de vida do início dos anos 70 até o fim de sua existência.
Escrever a história contra os erros do passado
Portanto, não é correto dizer que a ditadura revolucionária do proletariado mostrou sua inviabilidade para as mulheres. Quem mostrou sua inviabilidade foi o stalinismo e sua ditadura. E por outro lado, quem mostra sua inviabilidade até hoje é o próprio capitalismo que, na maior parte do mundo, nunca garantiu direitos básicos e democráticos para as mulheres trabalhadores e aonde a luta impôs conquistas para as mulheres, como na Europa, o capitalismo demonstra cada vez mais sua indisposição de mantê-las para salvar as burguesias de suas crises.
É por isso, que nós mulheres socialistas e revolucionárias, queremos entrar a fundo do debate de qual é a saída. Queremos desmascarar a noção que carimba sobre a luta socialista revolucionária a idéia de que é um projeto que não deu certo, sobretudo quando essa idéia é apresentada por setores que afirmam projetos no marco da manutenção do Estado burguês e como ação política acabam por defender governos que em nada avançam para resolver as condições das mulheres trabalhadoras. É cada vez mais atual e novo dizer que "A primeira ditadura do proletariado abre verdadeiramente o caminho para a completa igualdade social da mulher".
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