segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Legalizar as drogas é igual legalizar a prostituição?

Camila Lisboa, da Executiva Nacional do Movimento Mulheres em Luta

No dia 06 de janeiro, foi publicado um artigo na sessão Opinião do jornal A Folha de São Paulo, de autoria de Fabio Zanini, que faz uma infeliz comparação entre o consumo de drogas e o consumo do sexo. Zanini confronta as flexibilidades legais no que diz respeito às drogas, em alusão às recentes decisões mais tolerantes em relação ao consumo da maconha no Uruguai e no estado do Colorado nos Estados Unidos, com as medidas decididas pelo Estado francês de multar os clientes que se utilizem dos serviços de prostitutas, medida já adotada pela Suécia.

Segundo o autor, o consumo de drogas e a “opção” por se prostituir estão no mesmo terreno da decisão individual de cada pessoa. Por isso, para ele, o mesmo critério flexível de leis do Estado que permitem o consumo de drogas deveria permitir a utilização dos serviços sexuais, uma vez que as pessoas que se prostituem optem por fazer essa atividade, o que colocaria o consumidor do sexo em uma posição “tranquila”, uma vez que não está fazendo nada que o prostituído não queira.

Há dois problemas nessa comparação esdrúxula. O primeiro problema é que o colunista trata a droga e o corpo da mulher – mais de 80% da população que se prostitui – como mercadoria.

No capitalismo, tudo o que se produz, se vende e se compra, entra nos critérios de circulação do mercado é, portanto uma mercadoria, com certo valor agregado, de acordo com a quantidade de trabalho dispendida para produzi-la. A ilegalidade das drogas a colocam em uma situação de difícil acesso, o que faz com que o mercado ilegal de drogas seja um setor extremamente rentável que enriquece muita gente, se constituem como grandes obstáculos para a legalização das drogas em diversos países do mundo. Não sejamos ingênuos e inocentes: também no debate sobre a legalização das drogas está em questão o seu papel como mercadoria.

Ocorre que o paralelo feito pelo autor do texto em questão evidencia o trato com o sexo, o corpo da mulher com os mesmos critérios expressos sobre a mercadoria droga. E este é um verdadeiro absurdo. Sim, no capitalismo, tudo é mercadoria. Mas há que se consentir com isso que o corpo da mulher também o seja? Poderia se dizer que o corpo de todos aqueles que vendem sua força de trabalho é também uma mercadoria, na medida em que é comprada pelos seus patrões, sejam públicos ou privados. Mas não lhes parece diferente essa comparação? Uma coisa é comprar determinadas habilidades técnicas e/ou intelectuais, outra coisa é consumir o corpo, o sexo. As primeiras, no capitalismo, também ocorrem com base na exploração e superexploração da força de trabalho, mas seriam as segundas tranquilamente aceitáveis, pelo simples fato de que no capitalismo tudo se compra?

O ponto de vista aqui expresso questiona as relações sociais e de produção do sistema capitalista, acredita que é possível e necessário desenvolver outra forma de organização social, que não tenha base na superexploração do trabalho. Mas estamos discutindo, neste momento, se em um estado, uma economia, tal como funcionam as coisas hoje, é legítimo aceitar a prostituição porque ela é uma simples escolha da mulher que quer fazer de seu próprio corpo uma mercadoria?

Aqui está o segundo grande problema da opinião de Zanini. A prostituição não é uma escolha. Não venha nos dizer que é uma opção o fato de uma mulher escolher ganhar 2 ou 3 mil reais vendendo seu próprio corpo, em lugar de ganhar 500 reais em um serviço de telemarketing ou de limpeza, etc. Isso não é uma escolha.   

Também não é válido refletir o porquê as mulheres são o maior alvo da prostituição? E o que mais está presente nas relações de compra do sexo, que acabam submetendo as mulheres como amplo setor da população que se prostitui? Pelo critério do autor, de que a prostituição é uma mera opção de quem se prostitui, ele diria que a maior parte das pessoas que escolhem essa “profissão” são mulheres. Mas na vida real, a prostituição é uma relação entre desiguais, é uma relação de dominação, é uma escravização. Por isso, são os setores historicamente oprimidos os maiores alvos da prostituição: as mulheres, na ampla maioria negra, e em muitos países imigrantes e os homossexuais.

Também não é motivo de reflexão o fato de que são exatamente esses setores sociais que ganham os menores salários, trabalham nos locais mais precarizados, compõe a maior parte dos indicadores sociais de pobreza e são os maiores alvos de violência sexual, física, etc. É uma simples escolha?

Este debate está presente no Brasil com o projeto de lei apresentado pelo deputado Jean Willys, do PSOL, que possui repúdio de grande parte dos movimentos de luta pelos direitos das mulheres, inclusive de mulheres do seu próprio partido. Os últimos acontecimentos na França tem aquecido esse debate. Está um curso na França um processo de mudança na lei em relação à legalização da prostituição. A multa aos clientes é parte desse projeto de reverter essa realidade no país, porque a experiência que se tem é que o país, ao longo dos anos de legalização, tornou-se atrativo para o mercado sexual, atraindo milhares de mulheres, sobretudo imigrantes negras para essa profissão.

A legalização da prostituição não liberta as mulheres para escolher tal profissão. Ao contrário, a legalização da prostituição institucionaliza uma prática de escravidão do corpo da mulher. Isso é diferente em relação às drogas pelo simples fato de que o corpo da mulher não é uma mercadoria, um pequeno detalhe esquecido por Zanini.


Mesmo assim, o efeito da legalização das drogas não está somente na liberdade de o usuário utilizá-la, mas de haver um controle maior do Estado sobre cultivo, produção, consumo e distribuição das substâncias ilegais. Há quem diga, entretanto, que a legalização permitiria esse controle do Estado também, para não haver superexploração sexual, sobretudo de menores. No entanto, a experiência da França também é importante nesse sentido, pois demonstrou-se que as leis mais flexíveis para os serviços sexuais incentivam o aumento desse mercado, ou seja, a legalização favorece os patrões do sexo, os exploradores do sexo e não os direitos individuais das prostitutas.

4 comentários:

  1. O projeto não trata da "legalização da prostituição" pois a prostituição não é crime. Se trata da REGULAMENTAÇÃO DA PROFISSÃO DE PROSTITUTA. Com a regulamentação da atividade teria de haver uma mudança no Código Civil Brasileiro que CRIMINALIZA a atividade de EXPLORAÇÃO DA PROSTITUIÇÃO, já que a mulher passaria a exercer uma profissão cujo patrão seria o que hoje é conhecido pela figura do proxeneta. Portanto é ilegal a exploração sexual. Eu, enquanto militante feminista, sou contra a regulamentação que já precarizaria ainda mais a condição da mulheres que se encontram trabalhando com o sexo.

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    1. Ana, o Código civil não criminaliza. Quem faz isso é o Código penal; E no código penal, o rufianismo (ganhar dinheiro com a sexualidade de outrem) já é crime. E de que adianta essa lei? A exploração do corpo da mulher vai muito além de cafetões. O texto questiona a questão da exploração sexual pelo fato de que grupos menos favorecidos se veem obrigados a se prostituir por falta de opção melhor para obter uma renda, e sendo assim, para sobreviver. As mulheres trans*, por exemplo, não possuem oportunidades no mercado de trabalho. São discriminadas e vistas como "um homem que quer se passar por mulher". Ninguém dá emprego. Elas se veem obrigadas a se prostituir para sobreviver. Ou seja, não é uma escolha. E mesmo que uma pessoa que se prostitui não tenha cafetão, ainda assim ela é explorada sexualmente. Há alguém que compra o corpo dela, se aproveitando de sua falta de opções de sobrevivência, comprando seu "serviço" sexual, e a submetendo a uma subserviência sexual (na medida em que o cliente paga, então tem o direito de fazer do corpo alheio o que quiser). Essa exploração sexual vai muito além do rufianismo e tem muito mais a ver com os valores sociais. Na medida em que pessoas são excluídas e consideradas inferiores, não lhes resta alternativa senão se submeter, vender ou alugar seus corpos para sobreviver. Ou seja, na maioria das vezes, essas pessoas não escolhem. Então é preciso questionar esses valores marginalizantes, em vez de legitimá-los.

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  2. Tenho acordo com o texto. Proponho uma reflexão acerca das mulheres trans*, que não foram citadas especificamente no texto, mas são mulheres constantemente levadas à situação de prostituição. Refletir acerca de como são institucionalmente marginalizadas, não têm a identidade reconhecida pelo Estado, frequentemente não conseguem terminar o ensino médio e cursar superior devido à opressão que sofrem, são forçadas aos empregos mais marginais, às ocupações mais precárias e acabam em situação de prostituição, além de estarem sempre sob a ameaça de violência e feminicídio. Mulheres que sofrem com as ideologias machistas, transfóbicas e homofóbicas e representam o quão cruel é falar sobre "liberdade individual", liberdade esta que se resume à liberdade do opressor em objetificar, mercantilizar o corpo e o sexo da mulher.

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  3. "Uma coisa é comprar determinadas habilidades técnicas e/ou intelectuais, outra coisa é consumir o corpo, o sexo." Parece que esta afirmação justifica a compra e venda de "determinadas habilidades técnicas e/ou intelectuais" do corpo, mas considera algo como injustificável (imoral?) essa mesma compra e venda quando essas determinadas habilidades envolvem sexo. A mim parece que o problema não é envolver ou não sexo, mas envolver compra e venda do trabalho elaborado pelo corpo d@ trabalhador@. A imoralidade, portanto, é a compra e venda do corpo d@ trabalhador@, seja para o que for. Não tem nada a ver com o tipo de trabalho exercido.

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